Homem passa por um alçapão em uma capela e encontra uma área secreta repleta de antigos mistérios

Estamos em 1975 na cidade de Florença, Itália, e o diretor do Museu das Capelas dos Médici, Paolo Dal Poggetto, tem um problema. De acordo com o The Washington Post, a instituição recebe mais de 500 mil visitantes por ano. No entanto, a saída e a entrada ficam muito próximas em um apertado corredor. O diretor, então, busca uma saída alternativa. À procura de espaço, ele tira um antigo móvel de seu lugar e, inesperadamente, encontra um alçapão no chão. Ao abrir, depara-se com um surpreendente local.

Dal Poggetto encontrava-se em uma pequena sala - uma sacristia - ao lado da capela principal quando fez sua descoberta. Ele estava trocando vários móveis de lugar para ver se conseguiria criar uma saída naquele pequeno cômodo. Porém, quando o especialista empurrou um velho armário, ele avistou um alçapão de madeira.

Foi naquele momento, na sacristia, que o diretor do museu fez um achado. Afinal, a pequena entrada no chão havia sido completamente esquecida ao longo dos anos. Quando a abriu, Dal Poggetto deparou-se com uma íngreme escadaria que descia para a escuridão. Até onde ele podia ver, o espaço estava cheio de lixo.

Ao que parece, aquela área não era usada há quase duas décadas. Anteriormente, servia como um depósito de carvão que impulsionava o primitivo sistema de aquecimento dos braseiros. Contudo, em novembro de 1966, o rio Arno, o qual atravessa Florença, inundou e provocou terríveis consequências. Conforme o site Into Florence, as águas atingiram alturas de até seis metros e mataram 101 habitantes da cidade.

Enfim, a Basílica de São Lourenço é uma igreja da família Médici que conta com a Sacristia Nova, de Michelangelo, e aquela misteriosa câmara sob o alçapão. Infelizmente, a igreja foi um dos lugares inundados pela enchente. A capela principal e a sacristia acabaram sendo limpas depois, entretanto, o pequeno espaço sob o alçapão não. Assim, a entrada foi escondida por um armário esse tempo todo.

Como Dal Poggetto mal conseguia conter sua curiosidade, ele decidiu que a misteriosa área sob o museu valia a pena ser investigada. Portanto, o diretor começou a limpar o local e o que ele descobriu após algum tempo foi surpreendente. Ao que tudo indica, a câmara está diretamente relacionada aos esplêndidos túmulos dos Médici, os quais se encontravam acima.

No entanto, quem eram os Médici - esta família tão rica a ponto de criar esses extraordinários túmulos por um dos maiores artistas da época? Bem, a Casa dos Médici surgiu pela primeira vez na cidade-Estado de Florença, no século 13, graças as suas operações bancárias e comerciais. Foi no século 15, porém, que a família Médici se ergueu como principal poder por trás do Renascimento.

O Renascimento foi um período em que a arte e a cultura floresceram na Europa. Grandes artistas como Michelangelo e Leonardo da Vinci puderam prosperar durante essa época devido ao apoio de alguns patronos, como os Médici. Em 1434, Cosimo de' Medici subiu ao poder naquela cidade-Estado e contribuiu para fazer de Florença um importante local para a criação do Renascimento.

Os Médici tiveram quatro papas e permaneceram no poder até 1737. Naquele ano, o último soberano da família faleceu sem deixar um herdeiro. Dessa forma, o domínio da Casa dos Médici teve um fim. Contudo, vamos voltar um pouco ao tempo em que Michelangelo ficou encarregado de criar a Sacristia Nova na Basílica de São Lourenço.

Localizada no centro de Florença, a Basílica de São Lourenço foi construída no século 15 e era basicamente a igreja dos Médici. Na verdade, ela foi levantada já em cima de uma anterior, a qual possuía mais de mil anos. Em 1520, o cardeal Giulio de' Medici - mais tarde denominado de Papa Clemente VII - encomendou a Michelangelo a construção de um mausoléu para importantes membros da família Médici. Bem, esse espaço viria a ser conhecido como Sacristia Nova.

Michelangelo e sua equipe terminaram de construir a Sacristia Nova - onde a misteriosa área foi encontrada sob o alçapão - em 1524. Entretanto, isso estava longe de ser o fim do projeto, pois logo o grande artista passou a criar belíssimas esculturas de mármore dos moradores do mausoléu, as quais levaram mais de nove anos da vida de Michelangelo.

De toda maneira, não são apenas essas belas estátuas dos Médici que chamam a atenção das pessoas até hoje. Michelangelo e alguns outros sob sua supervisão acabaram esculpindo representações da Madonna e o Menino e de Cosme e Damião - guardiões da família Médici. Além disso, fez esculturas alegóricas do Dia, da Noite, da Aurora e do Crepúsculo e também sarcófagos de mármore intrincadamente esculpidos para os restos mortais dos antigos Médici.

Pois é, os Médici - especialmente o cardeal Giulio - foram importantes patronos de Michelangelo. Todavia, trabalhar para homens tão poderosos pode ter seu lado negativo - ainda mais quando essas pessoas têm grande poder político. Quando alguns acontecimentos em Roma tomaram um inesperado rumo, uma revolta popular derrubou a família Médici.

Em 1527, Roma foi invadida pelas forças hostis do Sacro Imperador Romano Carlos V e saqueada em meio a muita morte e destruição. O Papa Clemente VII - que você se lembrará como o cardeal Giulio de' Medici, o qual encomendou a Michelangelo a construção da Sacristia Nova em Florença - foi forçado a fugir. Então, a anarquia tomou conta da cidade.

Ao que parece, por causa dos acontecimentos em Roma, o povo de Florença levantou-se contra a Casa dos Médici. Em um movimento provavelmente considerado imprudente mais tarde, Michelangelo jogou sua sorte com os rebeldes, os quais fundaram uma república. Ele chegou até a ajudá-los a assegurar as fortificações da cidade-Estado.

No entanto, a hostilidade entre o Papa Clemente VII e o Imperador Carlos V não durou nada e eles fizeram as pazes em 1529. Isso, claro, não foi uma boa notícia para os republicanos e muito menos para Michelangelo. Afinal, o Papa e o Imperador acabaram combinando forças e cercando Florença, onde Michelangelo vinha trabalhando para melhorar as defesas da cidade.

Clemente e Carlos estavam determinados a restaurar o poder dos Médici sobre Florença. Por isso, insistiram por dez meses na manobra de cerco e foram muito bem-sucedidos. Michelangelo, portanto, encontrava-se em perigo, já que havia traído seus antigos patronos da família Médici. Só havia uma coisa a ser feita: ele teria que se esconder.

Pelo visto, Michelangelo escolheu ficar naquela área sob o alçapão colocado no chão da Sacristia Nova que ele mesmo havia projetado. Foi isso, aliás, que Dal Poggetto encontrou em 1975. Assim que ele abriu aquela porta, o especialista deparou-se com o exato local onde Michelangelo se escondeu por dois meses.

Ao menos foi isso que Dal Poggetto passou a achar. Inclusive, segundo a NPR, ele teve ainda mais certeza disso pelo que encontrou nas paredes da câmara, a qual mede cerca de sete metros de comprimento e um pouco mais de dois metros de largura. Não parece ser o melhor ambiente para se ficar por meses, certo?

Porém, foi o que Michelangelo conseguiu fazer durante sua prisão auto-imposta que intrigou Dal Poggetto. Com bisturis, o diretor e os outros funcionários do museu passaram horas removendo com cuidado duas sujas camadas de gesso das paredes daquele espaço. Bem, o que estava escondido ali pegou todo mundo de surpresa.

Quando a cobertura foi removida, o The Washington Post relatou que lá havia uma enorme coleção de quase 180 desenhos gravados diretamente nas paredes. A propósito, Dal Poggetto acreditava que pelo menos alguns deles foram feitos pelas próprias mãos de Michelangelo. Para qualquer diretor de museu, aquela era uma descoberta e tanto por contar com obras inéditas de um dos mestres do Renascimento.

De acordo com um artigo de um jornal de 1979, Dal Poggetto calculou que 97 daqueles desenhos nas paredes foram mesmo executados por Michelangelo. Os outros, contudo, parecem ter sido feitos pelos alunos ou assistentes do artista. De qualquer forma, esses desenhos de Michelangelo eram especialmente valiosos por causa de sua dimensão. Afinal, muitas destas obras foram esboçadas em tamanho real ou até maiores.

O tamanho desses desenhos nas paredes da câmara deixou todo mundo curioso. Ainda mais porque, durante sua vida profissional, parece que Michelangelo costumava destruir a maior parte de seus rascunhos de trabalho. Conforme o The Washington Post, aqueles que sobreviveram são relativamente pequenos e gravados em folhas de papel de 50 cm.

O que tornava tudo mais fascinante era o que aqueles desenhos representavam. Pelo jeito, eles foram feitos em lápis de cera vermelho e carvão vegetal. Além disso, as peças pareciam ser os primeiros esboços de algumas obras que Michelangelo estava criando. Um intrigante desenho aparentava ser o delineamento inicial de um trabalho que grandes artistas executariam mais tarde nas paredes da Capela Sistina na Cidade do Vaticano, em Roma. Pois é, ali estava o esboço do processo de criação de um gênio!

Aliás, alguns rascunhos se assemelhavam muito com a planta da Biblioteca Medicea Laurenziana, a qual Michelangelo desenhou e decorou em uma parte da Basílica de São Lourenço. Já outros desenhos eram o delineamento inicial de pinturas e estátuas que Michelangelo criaria mais tarde em sua carreira. Uma dramática obra de um pouco mais de dois metros de altura, por exemplo, mostrava o Cristo portando a cruz.

Um outro esboço apresentou-se bastante interessante por simplesmente revelar um par de pernas. Entretanto, não de qualquer um. Dal Poggetto acreditava que aquele era o delineamento inicial da estátua de Giulio De' Medici - o homem que se tornou o Papa Clemente VII -, a qual adornaria seu túmulo na Sacristia Nova, bem acima do esconderijo de Michelangelo.

Em uma entrevista com a NPR em 2018, por sua vez, Paola d'Agostino resolveu descrever a área secreta de Michelangelo. Dessa maneira, a principal curadora da Sacristia Nova e também diretora do Museu Nacional do Bargello, em Florença, compartilhou à estação de rádio: "Você tem que descer uma série de degraus íngremes para então começar a ver todos estes desenhos de tirar o fôlego".

Alguns dos rascunhos nas paredes daquele espaço particularmente despertaram o interesse de D'Agostino. Ela disse que um em específico lembrava a estátua de David - que é, talvez, a obra mais famosa do artista renascentista. Se você alguma vez visitar Florença, não perca! A magnífica e gigantesca peça pode ser vista na Galeria da Academia.

Em seguida, D'Agostino falou a respeito de um esboço especialmente fascinante de uma estátua dos tempos antigos chamada Grupo de Laocoonte. A escultura foi descoberta em Roma em 1506 - ano em que Michelangelo esteve na cidade - e retrata um ataque de serpentes marinhas a um sacerdote troiano e seus filhos, sendo essa uma cena da mitologia clássica. D'Agostino explicou: "Michelangelo estava obcecado - como todos os outros escultores da época - porque era a encarnação do movimento e da expressão profunda na escultura".

Dal Poggetto deixou a direção do Museu das Capelas dos Médici em 1979 e, quatro décadas depois da descoberta, acabou falecendo aos 83 anos de idade. Em 2017, seu antigo cargo foi ocupado por Monica Bietti, a qual apoiou a teoria defendida por Dal Poggetto de que um temeroso Michelangelo precisou se esconder com o retorno dos Médici. Ainda nesse ano, Bietti disse à National Geographic: "Evidentemente, Michelangelo estava com medo e decidiu ficar na câmara".

Acerca de seu tempo na sala secreta, Bietti acrescentou: "[Michelangelo] foi um gênio. O que ele pode ter feito lá? Apenas desenhar". Assim, nós temos uma excelente história. Afinal, o artista cometeu um erro ao apoiar os republicanos florentinos contra seus patronos, os Médici. Foi um erro, inclusive, porque os Médici voltaram com tudo em 1530 - somente três anos após terem sido depostos - e qualquer um que tivesse apoiado aqueles que se opuseram ao governo deles se encontrava vulnerável à vingança da família.

Nervoso, Michelangelo foi forçado a encontrar um esconderijo para escapar da ira dos Médici. Dessa forma, como tinha trabalhado na Sacristia Nova da Basílica de São Lourenço, ele provavelmente conhecia bem a área escondida sob aquele alçapão, sendo esse o local que Dal Poggetto encontrou em 1975.

Quase 500 anos antes do feliz achado de Dal Poggetto, Michelangelo havia estado naquele espaço por alguns meses. Ao que tudo indica, para passar seu tempo, o grande artista desenhou nas próprias paredes do que era sua cela de prisão. Ao fazer isso, ele criou uma fascinante série de esboços do trabalho que executaria mais tarde.

Todavia, nem todo mundo acredita nessa história. William Wallace mesmo, da Universidade de Washington em St. Louis, Missouri, viajou para Florença a fim de estudar os desenhos sob a Sacristia Nova. Em 2018, ele contou à NPR: "Acho que talvez menos de meia dúzia possa ser de Michelangelo". Esta avaliação, então, mostra-se visivelmente mais conservadora do que aquela feita por Dal Poggetto.

Em 2018, Wallace disse à National Geographic que diversos rascunhos poderiam ter sido desenhados por assistentes, e não pelo próprio mestre. Pois é, tentar descobrir o que poderia ser de fato uma obra diretamente atribuível a Michelangelo não foi tarefa fácil. Wallace observou: "Separar um do outro é quase impossível".

Wallace também duvidava que um homem na posição de Michelangelo seria forçado a se esconder naquela suja câmara sob a Sacristia Nova. Até porque o artista poderia muito bem ter se voltado para algum de seus outros ricos patronos. A propósito, Wallace suspeita que esses esboços foram feitos antes dos Médici retornarem à cidade de Florença em 1530. Ao que parece, existe a possibilidade dos desenhos terem sido feitos nos anos de 1520 - período em que Michelangelo e seus assistentes estavam trabalhando na Sacristia Nova.

De qualquer modo, estes rascunhos complementam demais o nosso conhecimento da arte renascentista. Ele esclareceu à NPR: "É um vislumbre da cultura da época. Estes desenhos fizeram parte do dia a dia de várias pessoas as quais tiveram que realizar um complicado e importante trabalho como as Capelas dos Médici".

Aliás, quando falou à National Geographic, Wallace compartilhou mais: "Estar naquela sala é emocionante. Você se sente privilegiado. Você se sente mais próximo do processo de trabalho de um mestre e de seus alunos e assistentes". Ou seja, é óbvio que qualquer historiador de arte ficaria entusiasmado com essa descoberta do século 16 - independentemente de quem fosse o artista.

Parece haver, portanto, poucas dúvidas de que esses desenhos foram criados durante a década de 1520. Alguns deles podem até mesmo ter vindo das mãos do próprio Michelangelo. Quem quer que tenha sido o autor dessas fascinantes obras - casualmente desenhadas nas paredes desse espaço iluminado por uma única e pequena janela -, elas são uma intrigante visão do trabalho dos artistas renascentistas.

Mas e Michelangelo? Qual foi o destino dele depois que os Médici voltaram para Florença? Bem, parece que a poderosa família acabou o perdoando por qualquer traição que ele pudesse ter cometido. Talvez seu talento como artista simplesmente tenha compensado quaisquer transgressões nas mentes dos Médici.